DF: Para intimidar, jovens marcam número do código penal no cabelo

16/01/2011 13:53

 Na Estrutural, eles fazem cortes de cabelo com listras e marcam números relacionados a artigos do Código Penal na cabeça como forma de demarcar território e intimidar moradores. Policiais dizem, porém, que nem todos são bandidos


Saulo Araújo


 

Na fim da Copa do Mundo de 2002, o atacante brasileiro Ronaldo lançou moda entre crianças e adolescentes ao entrar em campo com um corte de cabelo estilo “Cascão”, personagem da Turma da Mônica. Mais recentemente, o moicano do craque Neymar, do Santos, caiu nas graças dos mais novos, assim como a franja do cantor canadense Justin Bieber, copiada por fãs do mundo inteiro. Na Estrutural, uma das cidades mais carentes do Distrito Federal, a inspiração dos jovens ao mudar o visual passa longe das celebridades dos campos e palcos. Agora, os pedidos mais comuns nas barbearias da região são artigos do Código Penal, números que representam incredulidade — como o 666 —, além de listras que servem para identificá-los como integrantes de determinados grupos criminosos. 

É pelo corte de cabelo que eles tentam demonstrar poder; uma forma de intimidar moradores sem ameaças verbal ou física. Pelo tipo de desenho marcado na cabeça, é possível saber até mesmo quais os delitos praticados. O que deveria ser sinônimo de vergonha é ostentado como um troféu para aqueles que vivem a dura realidade das ruas. No entanto, a ânsia de se mostrar pode render cadeia, pois a legislação vigente no país pune qualquer cidadão que faça apologia ao crime. 

No Natal, a Polícia Militar apreendeu, em Brazlândia, cinco adolescentes da Estrutural acusados de roubarem um carro. Dois deles chamaram a atenção dos agentes pelas inscrições grafadas na cabeça. O mais novo, de 15 anos, conta que pagou R$ 7 ao cabeleireiro para ter como marca o número da besta (666). O garoto, que abandonou a escola há dois anos para se dedicar ao crime, garante ser católico e que as unidades não têm relação com sua fé. “Acredito em Deus. Fiz só porque achei legal, porque todo mundo está fazendo. Virou moda fazer coisa diferente na cabeça aqui na Estrutural”, afirmou. 

Ousadia 
O outro adolescente apreendido foi ainda mais ousado. Com o intuito de impor respeito na comunidade onde vive, trocou o antigo topete por um corte baixo, onde lê-se: “121”. Os três algarismos representam o crime de homicídio no Código Penal Brasileiro. O jovem tentou despistar alegando que apenas “apreciava” o número, mas sua ficha de antecedentes criminais não deixa dúvidas sobre a sua intenção: relembrar um assassinato cometido há dois anos. “Não tem nada a ver com crime que cometi, não. É só porque achei bonito. Copiei de uns amigos da Estrutural. Apenas isso”, justificou o menor. 

O Correio percorreu as ruas da Estrutural por dois dias e confirmou que o crime dita a moda no lugar. Os donos de barbearias e salões de beleza admitem que os pedidos por cortes diferentes aumentaram significativamente em 2010. Alguns estão até procurando aperfeiçoar as habilidades para atender a demanda. “Fico praticando em casa, no papel mesmo, como melhorar meus desenhos. Todo dia aparece pelo menos um querendo algum corte fora do padrão”, afirmou o proprietário de uma barbearia que não quis se identificar. 

Um outro cabeleireiro prefere não perguntar o significado dos símbolos. “Dou uma de doido. Finjo que não entendo nada. Só quero fazer meu trabalho e receber meu dinheiro. Eles pagam direito e, para mim, é isso o que importa”, relata. 

Usar códigos em busca de espaço nas periferias não é um fenômeno dos jovens da Estrutural. Em Planaltina e São Sebastião, aqueles envolvidos com a criminalidade também têm formas diferentes de demonstrar poder. No Pombal e Arapoanga, por exemplo, alguns adolescentes e até adultos carregam no corpo inscrições de artigos de crimes que cometeram, só que em vez de marcarem a cabeça, eles tatuam o corpo. Já em São Sebastião, a guerra entre gangues tornou-se tão acentuada a ponto de integrantes de um grupo tatuarem como símbolo o Coringa, personagem do desenho animado Batman. Como forma de retaliação, o bando rival passou a tatuar o Coringa enforcado. 

Penalidade 
O Artigo 287 do Código Penal Brasileiro (CPB) pune com multa ou pena de três a seis meses de prisão aquele que fizer, publicamente, apologia ao crime. 
Os cortes com números já são comuns na Estrutural, mas o que faz mais sucesso entre os adolescentes envolvidos com a marginalidade é aquele em que são feitos traços. O banco de imagens da 8ª Delegacia de Polícia (Setor de Indústria e Abastecimento), responsável pela Estrutural, possui quase 3 mil imagens de detidos. Entre elas, há dezenas de menores com o mesmo tipo de corte. 

Segundo a ex-chefe da unidade policial, Deborah Menezes, alguns grupos fazem o mesmo corte para tentar enganar a polícia ao cometerem atos infracionais. “Eles fazem esse corte. Quando um deles comete um assalto, por exemplo, e a vítima conta à polícia que um deles têm um cabelo com essas características, dificulta a identificação, porque o agente chega à quadra e vai ter 20 meninos com o cabelo do mesmo jeito. Só que, para o azar deles, nós temos outros métodos para prendê-los. Prova disso é a quantidade de detenções que realizamos em 2010”, frisou Deborah, que foi transferida essa semana para a 20ª DP, do Gama. 

A delegada explicou que nem todos os jovens da Estrutural que fazem riscos no cabelo são infratores, mas alerta aos pais que fiquem atentos às mudanças de comportamentos de seus filhos quando aparecerem com um estilo diferente em casa. “Não podemos generalizar. Lógico que tem muito garoto que acha bonito fazer um corte diferente e, nem por isso, ele é criminoso. Isso deve ser encarado com normalidade, pois são coisas da idade. Só pedimos aos pais que procurem saber se ele fez aquilo apenas por estilo ou se tem algo mais perigoso por trás”, recomendou. 

Vinícius (nome fictício), 16 anos, resolveu copiar o corte dos colegas da rua para curtir o réveillon e voltou seis dias depois para retocar o visual. Ele confirma que se sentiu mais respeitado depois que fez a marca, mas garante que o estilo em nada tem a ver com o crime. “É só moda mesmo. É legal ser diferente, as meninas acham bonito. Sei que por aqui tem gente que desenha um monte de coisa errada na cabeça, mas eu não acho bonito”, disse o rapaz. (SA) 


PALAVRA DO ESPECIALISTA 
Falso poder 

“O desejo de criar um código independe de classe social. O jovem de classe média pode querer demonstrar poder usando um tênis ou uma camisa da moda. Já o adolescente pobre quer chamar a atenção com um corte de cabelo, tatuagem, ou um símbolo que o identifique dentro do seu grupo. A intenção deles, nos dois casos, é a mesma: mostrar poder, o que muda é a forma com que eles se apresentam. Percebemos que muitos desses jovens não têm estrutura familiar, com pais ausentes e sem referências. Aliado a isso, outro problema é a falta de equipamentos públicos nessas regiões, o que poderia ocupar o tempo deles com lazer. Como não existem opções, em vez de se reunirem para praticar esportes, eles se juntam para o crime.” 
Bruna Gatti, mestre em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em violência juvenil 


Vítima sofre retaliação 

Outros adereços que os jovens da Estrutural usam para se destacar são os anéis em todos os dedos. Na 8ª DP, os agentes aprenderam diversos adolescentes e pré-adolescentes que têm esse hábito. Em outras épocas, o código dos meninos da cidade era tingir os cabelos de loiro e ruivo. Assim como no caso dos cortes, eles procuram se autoafirmar com a atitude, além de deixarem a população local apavorada. 

O aposentado Getúlio (nome fictício), 59 anos, conta que na noite de Natal teve sua casa invadida por cinco bandidos. Três deles tinham listras no cabelo e um usava anéis. Os ladrões levaram eletrodomésticos e o pouco dinheiro que ele guardava. 

No último dia 2, um dos criminosos foi preso e os comparsas acharam que Getúlio tinha feito denúncia à polícia. Ele foi cercado e espancado. Com medo, teve que sair de casa com a família. “Nem registrei ocorrência justamente para preservar minha vida, mas a polícia, não sei como, chegou até esse rapaz que me roubou. Eles me acusaram de ter entregado o parceiro deles e me bateram no meio da rua, na frente de todo mundo. Não tenho mais coragem de viver ali. Saí da minha própria casa para viver de favor na casa de parentes”, lamentou. 

O comandante em exercício do 4º Batalhão de Polícia Militar (Guará) — que abrange a Estrutural —, major Gilmar da Silva Ferreira, disse que as equipes estão atentas à formação de novos grupos na cidade e que os principais delitos estão associados ao tráfico e uso de drogas. “Por ser um lugar pequeno, recebemos poucas denúncias da comunidade. Mesmo com todas as dificuldades, estamos conseguindo desempenhar um bom trabalho”, afirmou.


Denuncie 
» Quem tiver alguma informação que leve a polícia aos acusados de roubos e tráfico na Estrutural pode ligar para o Disque Denúncia da Polícia Civil (197). O autor da denúncia não precisa se identificar.